Criação de cachorros em apartamento no Sion vira caso de Justiça em Belo Horizonte

Na parede do apartamento 102, em cores quentes, o quadro traduz texto do poeta francês Arthur Rimbaud (1854–1891): “Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia”. Retrato de casa letrada, onde vivem a economista Ana Luiza Jardim Loureiro, de 60 anos, os schnauzers Frederico, de 6, Penélope, de 9, e Lili, de 9, além da cocker spaniel Amora, de 8. Os quatro cães, “as crianças” de Ana Luiza, motivam desde maio uma ação judicial movida por um condomínio na Rua República Argentina, no Bairro Sion. O imbróglio provocado pela presença do quarteto no prédio de luxo já rendeu R$ 5.562,26 em multas para a economista, que depositou o valor em juízo. Ana Luiza já nomeou representante legal e está disposta a “levar a causa ao Supremo, se preciso”.

São 16 apartamentos no prédio de bom gosto e acabamento de primeira, com piscina, espaço gourmet, salão de festas e ginástica, próximo à Praça JK. Os moradores, incomodados em parte, querem apenas que se faça cumprir o regimento interno e a convenção de condomínio, que autoriza um único animal doméstico para cada unidade residencial. Ana Luiza se diz indignada e decepcionada com a desavença: “Esperava encontrar no arranha-céu de alto padrão pessoas com uma visão mais holística da vida, mais próximas da natureza”. A economista apresenta as contas de gastos de R$ 16 mil em isolamento acústico para conter os sons e não incomodar a vizinhança.

Ana Luiza vai além e apresenta a enfermeira Maria Aparecida dos Santos, de 37, contratada por três salários mínimos especialmente para cuidar do quarteto peludo. “Faço de tudo pela melhor limpeza. Vocês estão sentindo algum cheiro dos cães? Sentiram algum cheiro ruim no hall de entrada? Fico muito chateada com essa história. Não esperava ter que enfrentar esse aborrecimento”, lamenta. Poliglota, com especialização em economia na Europa, Ana Luiza diz saber do direito do outro. No entanto, não admite que “suas crianças” sejam tamanho problema para o condomínio.

“Não estou com quatro cachorros por vontade própria, para desafiar ninguém. Tinha dois, o Frederico e a Amora. Meu pai faleceu em maio e tive que ficar com as duas schnauzers dele. Eu ia abandoná-las na rua? Não seria capaz de fazer algo assim”, defende-se. Na suíte que Ana Luiza divide com os cães, as fotos do filho único, Bruno Loureiro, morto aos 32 anos, fazem contraste à alegria entre os cães. “Suicidou-se. Muito difícil. Nos primeiros seis meses você tem vontade de morrer. Depois, a gente busca força para continuar”, suspira e segue a brincar com Amora, de colar protetor para não prejudicar a cicatrização numa das patas.




Pela boa convivência Júnia Ulhoa, subsíndica do condomínio no Sion, lamenta que a situação tenha chegado à justiça. Segundo a decoradora e fisioterapeuta, Ana Luiza, convocada, “infelizmente” não compareceu às reuniões para tratar das reclamações que envolviam o comportamento dos cães Amora, Frederico, Penélope e Lili. “A notificação foi o último recurso. Apenas nas duas últimas reuniões ela enviou um advogado para representá-la”, diz.

Júnia, mãe de um casal de filhos, com uma yorkshire – a pequena Mabel – em casa, sabe bem da delicadeza da questão. A fisioterapeuta respira fundo e alonga a pausa para falar do assunto. Com notável educação e cuidado para se pronunciar sobre o transtorno que envolve o condomínio, a subsíndica – síndica a partir do próximo mês – não poupa Ana Luiza das responsabilidades da falta de diálogo. “O erro inicial foi ela ter vindo para o prédio sem se inteirar do regimento interno. Ela poderia ter se informado, conversado. Ter cachorro é muito bom, mas é preciso ter cuidado, em respeito aos outros”, considera.
Para Júnia, aborrecimentos maiores são sentidos pela vizinha de porta de Ana Luiza. Há reclamações de barulho, de mau cheiro e até de dejetos no elevador. Moradores de outros andares, segundo a subsíndica, também reclamam de latidos e sujeira na garagem. “O condomínio tentou conversar. Foram feitas tentativas de convocações em vão. É lamentável que tenha chegado a esse ponto”, insiste. Tocada pela discórdia envolvendo seus cães, Ana Luiza fala até em encontrar um novo imóvel para poder viver em paz com suas “crianças”.

Conduta antissocial pode ser punida

A presença de animais em apartamentos é uma questão delicada. O advogado Renato Horta, especialista em direto civil, explica que a Constituição federal assegura o direito de animais domésticos no imóvel, desde que os direitos dos outros moradores sejam respeitados. Os animais domésticos, diz ele, são considerados pela legislação como patrimônio. “A Constituição estabelece também a norma de que ninguém poderá sofrer restrições à sua propriedade, exceto nos casos em que a legislação assim determinar”, explica. “Mas o condomínio pode, sim, multar o morador em até 10 vezes o valor da taxa condominial caso haja conduta antissocial”, acrescenta. A convenção aprovada, alerta ele, deve ser observada e cumprida.

Fonte: Estado de Minas





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